sábado, 10 de janeiro de 2009


Passagem

Aos poucos começou a ficar diferente. Não era mais a mesma pessoa. O brilho do olhar antes tão vÍvido agora estava quase lívido, sem vida, como se a luz interior estivesse se apagando gradativamente.

A mente também não possuía a mesma destreza de antes e apresentava lapsos de memória que se acentuavam mais, criando lacunas entre os pensamentos, como se as pontes que antes os uniam houvessem ruído inesperadamente, impedindo a ligação entre a coerência e o bom senso.

O corpo antes vigoroso e dotado de belas formas, agora estava combalido, flácido, quase disforme, apresentando ,aqui e ali ,marcas do avançar da idade e uma coloração pálida que em nada lembrava a sua mocidade e os detalhes que lhe davam graça, leveza e beleza.

Em razão desse fato, a personalidade também estava mudando. Às vezes ficava ausente, bem longe do presente, viajando, talvez, velozmente ao encontro do passado onde então tudo era bem diferente.

Esse estado era suficiente para ensejar uma previsão pessimista que saltava à vista de todos quanto ao seu desdobramento.

O esquecimento viera para fazer morada, mesmo que de vez em quando permitisse que a lucidez se aventurasse timidamente por efêmeros instantes.

A saúde insatisfatória, com o alquebrado coração bombeando uma quantidade irrisória de combustível para que aquela maravilha da criação funcionasse, ainda que precariamente.

E os seus dias eram sempre iguais, como se fossem cópias de si mesmos, cada um marcando a eterna luta por mais tempo, adiando o inadiável.

Uma seqüência automática de um plano superior que, inexplicavelmente, omantinha constantemente pronta para o inesperado, o misterioso que sempre estava à espreita de modo silencioso.

Um dia ela se anunciou, porém sem nenhuma truculência, apenas usando a sutileza de sua forte consistência, enlaçando-a com ternura, de forma bem segura, ao abrigo de suas largas asas para um destino muito além da poeira das estrelas e de qualquer reflexão filosófica.

Foi de modo tão repentino que quase não se percebeu a sua partida com aquele ser transformado que agora fazia parte do etéreo, deixando apenas o seu legado no espaço terreno.

O espírito se foi, deixando o corpo sem vida, cor, calor e sem o amor que o havia incorporado. Um invólucro simplesmente, sem serventia e valia que não mais albergaria a chama que o preenchera com toda a alegria que um dia ali residira.

Ao ser aquela matéria inerte erguida nos braços, a gravidade quase não se fez sentir devido a sua pouca densidade, sendo transportada com facilidade para a longa estrada da eternidade.

E à medida que com ela caminhavam sentiram a futilidade da vaidade humana, enquanto com os olhos marejados, e ao mesmo tempo maravilhados, com o poder da criação em promover àquela transformação que agora faria parte do universo sempre em expansão.


Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante este texto. Uma descrição sucinta da imponderabilidade humana. Um ensaio literário que toca, mesmo que superficialmente, na magnitude da natureza em reciclar todos os seres vivos, transformando-os em matéria a ser absorvida pelo universo para que venha ser utilizada em variadas formas. Uma constante renovação que, como dizia Lavoisier, nada se perde, nada se cria... tudo se transforma.

Um abraço da

Renata Ventura